sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A diplomacia dos relacionamentos



Sessão Joe Wright – Orgulho e Preconceito

Por uma questão de acertos pessoais, submeti-me essa semana a uma tarefa absolutamente deleitosa: assistir em uma tarde a duas obras de arte em cinema do diretor Joe Wright. As duas adaptações de romances consagrados são fascinantes, absurdamente bem feitas, e cativantes em cada um de seus mínimos detalhes.

Inicio com Orgulho e Preconceito, estrelado pelos competentíssimos Keira Knightley e Matthew MacFadyen (além da sempre brilhante Brenda Blethyn, que me marcou a memória por “Segredos e Mentiras”). A adaptação do romance de Jane Austen põe diversas questões em relevo, através de uma narrativa deliciosa, bem ritmada, e com um apuro técnico digno da obra a que se propõe adaptar.

Não quero discutir aqui o vulto da obra de Austen na literatura mundial, nem somente a eficiência na transposição do mesmo para a linguagem cinematográfica. Para quem não conhece a história, é difícil não acrescentar spoillers ao falar sobre a mesma. Basta saber que o livro apresenta uma situação arquetípica que é modelo para as comédias românticas insossas da atualidade: a) mulher conhece homem; b) apesar de ficar claro para o espectador que nasceram um para o outro, diversos revezes os impedem de ficar juntos; c) acontecimentos variados aproximam novamente o par, que vai aos poucos ultrapassando os limites e as barreiras que se apresentavam no início; d) no clímax, quando tudo parece dar errado, finalmente os dois conseguem ficar juntos.

O que eleva a obra de Wright a outro patamar está contido em duas questões. Primeiramente, o ineditismo da estrutura. Austen escreve na passagem do XVIII para o XIX. À época, anterior mesmo aos romances genuinamente românticos, surpreende a capacidade de injetar sob a superfície aparentemente previsível, observações perspicazes sob a ordem social que se consolidava na Inglaterra. A estrutura que vemos tipicamente representada nos filmes da era Vitoriana (o século XIX inglês) está ali posta: o rígido sistema que separa a aristocracia dos empregados que a sustentam. A conclusão está clara: orgulhosos e riquíssimos aristocratas com preconceito pelo populacho vulgar e sem modos.

Contudo, as reflexões que Wright estampa na tela são também de outra monta. Não são apenas de ordem social, mas também no que se refere à natureza das relações do ser humano. E não falo da sociabilidade, mas da pessoalidade, do quanto ao nos relacionarmos, ansiamos pelo táctil, pelo palpável, pelo tangível. Suportar a hilariante fleuma com que os britânicos se relacionavam (e talvez ainda se relacionem) é um choque para nosso viés latino. Mas é também, por que não, um aprendizado.

Entendemos que não podemos dizer, expor, manifestar em sua plenitude aquilo que somos. Aprendemos que a polidez e a diplomacia que se impõem aos relacionamentos têm sua razão de ser. Obviamente não me submeteria a um ambiente em que as paixões são tão eficientemente reprimidas e atenuadas, manifestadas em doses homeopáticas de bom senso. Mas é fundamental perceber que há uma diplomacia necessária entre os seres humanos, uma falsidade benéfica, uma hipocrisia desejosa. Não seja tudo o que deseja. Não ceda a todos os caprichos. Não obedeça a todos os impulsos. Há determinadas normas de convívio. Há limites, e isso é ótimo.

É claro que as relações que se descortinam em Orgulho e Preconceito são a aparência do caricatural. Por outro lado, me recuso a atender a todas as expectativas, me submeter a todos os ditames sociais e me policiar a todo instante no sentido de satisfazer aquilo que esperam que eu seja, que eu faça, que eu compre, que eu coma, que eu viva. Mas no liberal século XXI, triste é constatar que moderação, domínio próprio e temperança são artigos em falta no mercado dos relacionamentos interpessoais. Não seria demais lembrar que pode ser surpreendemente satisfatório pensar um pouco nas expectativas dos outros.

Entre o excesso de pudor saxão e a ternura envolvente dos latinos, há um lugar em que talvez esteja a sabedoria disso que nos é essencial: relacionamentos.

Tempo Novo


Em história aprendemos a amar o tempo. A forma caprichosa com que se deixa inelutavelmente caminhar, ora acelerando, ora retardando as mudanças, os processos, a vida. Sem tempo não há história, não há graça, não há...

Aprendemos também que o tempo é uma mera construção cultural. Chineses e muçulmanos comemoram anos novos em outras ocasiões, fazendo do 31 de dezembro uma data a mais de aproximação com o Ocidente gregoriano. Mas mesmo assim, ainda que tentasse, me obrigo a neste dia parar, pensar, medir, avaliar, ponderar e claro, planejar.

O que fui, o que sou, o que serei. As três dimensões temporais me ultrapassam. O que me importa mais? Meu passado que muitas vezes me incomoda, me envergonha ou quem sabe, me mostra como fui bom? Meu presente que me assalta sem pudores, me priva do descanso, me assoberba com as imediaticidades? Meu futuro, que se descortina pouco a pouco, nebuloso e sarcasticamente surpreendente?

Procuro fugir das trivialidades. As mensagens rotineiras de fim de ano muitas vezes me cansam pela demagogia e pieguice. Mas é bom saber que amanhã um novo ciclo irrompe, sem pedir licença ou permissão. Amanhã virá, não tenho dúvidas, e ainda que talvez não desejasse, novos compromissos, responsabilidades, temores, dores, alegrias, vitórias, medos, incertezas, descobertas, aventuras se acumularão e se apresentarão. Como vivê-las?

Bem, meu compromisso de fim de ano é viver. Não obliquamente, mas experiencialmente. Quero experimentar a vida, provar, testar, saber do que se trata, do que é feito, do que não é.

Quero experimentar as pessoas em suas diferenças, em suas falhas, em suas qualidades (que muitas vezes mostram as minhas falhas). Quero sorver o meio, o sol, a chuva, os odores. Quero lembrar que o tempo é antes de tudo uma invenção, uma criação divina, pois antes de fazer qualquer coisa, Deus criou o tempo para que as coisas fossem ancoradas em algo.

Quero que o tempo não me domine. Quero entrar no atemporal. Abandonar o chronos e entrar no kayrós. Não me importa o passado. Meu futuro a Deus pertence. Meu presente é um lapso, um efêmero vislumbre da eternidade.

E me ocorre que o bom do ano novo é perceber que adoramos ciclos. Iniciar, viver, encerrar. Como seria viver sem um ciclo, sem saber que haverá um fim, que um dia, queiramos ou não as coisas mudarão?

Entraremos em mais um ciclo, mais um ano. Que ao final dele, eu me sinta melhor, me abra pra balanço, pese os muitos “prós” em detrimento dos (espero) não tantos “contras”.

Que neste ciclo você se disponha, se anime, se perceba. Mas lembre-se: só há sentido quando o que fazemos tem um propósito. O meu? Viver de uma forma que me aproxime cada vez mais do tempo em que o tempo não fizer mais sentido.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Minha Crise de Natal


As musiquinhas, como de ninar, trazem a mensagem universalmente conhecida: “Noite de paz, noite de amor, tudo dorme em derredor. Pobrezinho... nasceu em Belém!” E lá se vão diversas outras musiquinhas, repaginadas em samba, funk etc., embevecer os ouvidos nessa época anual.

Sou cristão, mas posso dizer que não gosto do Natal. Quer dizer, gosto demais do Natal... mas não desse que me satura com suas decorações bregas, receitas baratas de panetone e hipocrisia generalizada pairando no ar. Por um só ano, desejaria que o verdadeiro Natal fosse comemorado. Minha versão natalina do hino acima poderia ser: “Noite de tensão, noite de perseguição, diversas crianças são assassinadas por conta de um rei megalomaníaco. O Rei de toda a Terra, Senhor do Universo que de pobre não tem nada, escolheu revelar-se pobre não porque nasceu em uma manjedoura, mas porque simplesmente fez-se homem, e não há pobreza maior do que essa!”.

Há tempos que leio sobre uma versão higienizada do Natal. As pessoas se esquecem do real contexto no qual o Rei das Nações veio à Terra. Na verdade, as pessoas se esqueceram – ou muitas jamais souberam – quem foi realmente aquele que nasceu em Belém. Como diz um autor de quem gosto muito, por eras cortaram-se as unhas e aparou-se a juba do Leão da Tribo de Judá, domesticando-o em um gato de estimação que existe para suprir nossas necessidades pessoais. “Hei”, brada minha alma a cada pisca-pisca de mau gosto que encontro e a cada Papai Noel fajuto com quem me deparo, “ele veio trazer espada e não paz! Ele veio revolucionar e calar a boca da religiosidade fétida de sepulcros caiados! Ele veio tumultuar a noite plácida de pastores humildes e rejeitar a ostentação faustosa das megaigrejas! Ele veio desafiar as convenções, subverter a mesmice e revolucionar a história! Ele veio ensinar sobre como devemos viver uma vida distante do conforto que os bens de consumo insistentemente nos obrigam a desejar! Ele veio dilacerar o seu interior com suas garras, dessintonizar as frequências monótonas da retórica de sua hipocrisia irritante com seu rugido, reverter o fluxo de sua vida pré-programada segundo as expectativas do mundo com o brilho dos seus olhos!”

Rejeito o Jesus indefeso por força das circunstâncias e não por opção. Rejeito os coros serenos que não refletem o terror que os anjos infligiram nos pobres pastores, atemorizados pelo inesperado e pelo sobrenatural que é Cristo. Rejeito a manjedoura sem cruz, o ouro sem espinhos, o incenso sem cravos e a mirra sem sangue. Rejeito o Natal de “paz e amor” da era de aquários, da falsa paz que o mundo não dá, e do amor interesseiro baseado na reciprocidade.

Anseio pelo meu Natal. O meu particular. Que encontra o estábulo dentro de um sepulcro vazio. Que coloca os anjos dos pastores com os anjos de Maria Madalena no domingo da ressurreição. Que faz nascer em mim a morte. A minha morte. Cotidiana, difícil, dolorosa e distante, porque falta muito. Rejeito o Natal da vida do menino que não pensa na re-vida concedida ao Amado. Essa vida não tem sentido sem a outra. Minha vida não tem sentido sem nenhuma delas...

Anseio pelo Jesus que me dilacere com a Espada afiada de sua boca, me queime com o fogo de seus olhos e me cegue com o reluzir dos seus pés de bronze e com a alvura de seus cabelos. Sua primeira vinda só tem sentido com a segunda! Celebro a primeira, espero ardorosamente pela segunda...

Se este Natal ainda não está em ti, recomendo que faças da Ceia de logo mais um banquete teu, e não de Natal. Quando te vires diante do Rei e fores sondado com a profundidade de seu olhar, pelo menos serás sincero ao dizer que pra você, o dia 25 de dezembro era um dia todo teu, em que podias te fartar com comidas, bebidas e presentes. Pena que, caso seja essa tua resposta, não poderás fazer parte do melhor banquete, o eterno, reservado aos que fizeram do Natal e da Páscoa o sentido de cada inspiração e expiração ao longo de sua existência.